domingo, 4 de setembro de 2011

NOTA DO TRADUTOR - R.I.P.


Como prometido no post sobre o Ciclo de Conferências na ABL, vamos fazer nossa humilde homenagem a um velho amigo moribundo conhecido como “Nota do Tradutor”.

(sobre desenho de Kurt Vonnegut Jr.)


A ideia de que a Nota do Tradutor é algo indesejável não é nova. Por exemplo, em sua “Nota sobre o texto” da recente tradução de “Viagens de Gulliver” (Penguin Classics Companhia das Letras, 2010, p. 58), Paulo Henriques Britto cita um comentário do escritor Samuel Johnson, que viveu no século 18: “As notas são amiúde necessárias, porém são males necessários. (...) Passagens específicas são esclarecidas pelas notas, mas o efeito geral da obra é enfraquecido. A mente é esfriada pela interrupção; os pensamentos são desviados do tema principal; o leitor sente cansaço, e não sabe por quê; e por fim abandona o livro, a que dedicou um excesso de diligência”.

No entanto, ainda que antiga, agora essa má fama parece ter finalmente conquistado o meio literário e se transformado em uma verdadeira sentença de morte! Já havíamos percebido que os livros publicados no Brasil nos últimos anos raramente trazem notas, seja no rodapé das páginas, seja antes ou depois do texto principal, mas essa “repulsa” pela Nota do Tradutor tornou-se mais evidente para nós durante o Ciclo de Conferências da ABL. Lá, sua “inconveniência” foi mencionada mais de uma vez, tanto por um dos tradutores palestrantes, como também pelo acadêmico Geraldo Holanda Cavalcanti, coordenador do ciclo (estranhamente, a tradução do “Livro das Mil e Uma Noites”, feita pelo professor Mamede Jarouche e que é repleta de notas muito instrutivas, foi um dos temas do ciclo da ABL – e ninguém o criticou por usá-las...).

Enfim, não concordamos nem um pouco com isso!

Não achamos, como dizem, que a Nota do Tradutor seja uma distração aborrecida que perturba o ritmo da leitura e quebra o fluxo de raciocínio. Para começo de conversa, o leitor não é obrigado, em absoluto, a ler a Nota do Tradutor. Da maneira como seus críticos colocam, parece que, ao se deparar com a remissão a uma nota, o leitor é compulsivamente lançado para a dimensão mágica da Nota do Tradutor, de onde não consegue sair até que a tenha lido toda! Ora, só o leitor muito obsessivo vai sentir “cansaço” e “abandonar o livro”. Não quer parar para ler a nota, não para, ué!

A Nota do Tradutor é um instrumento usado para compartilhar certas informações que podem ter muitas funções: esclarecer uma passagem, indicar discrepâncias, situar histórica e socialmente o contexto, elucidar referências obscuras, mostrar a dificuldade ou impossibilidade de se traduzir um termo ou frase, ou simplesmente ilustrar algum trocadilho ou curiosidade do texto original. Isso tudo, nós acreditamos, dá ao leitor mais interessado a oportunidade de se aprofundar ainda mais no texto e, consequentemente, no pensamento do autor.

Infelizmente, há quem ache que a Nota do Tradutor não passa apenas de uma bobagem supérflua e cujo desaparecimento não fará falta a ninguém. Afinal, que diferença faz saber que a tradução mais adequada de D. Quixote seria D. Coxote, porque “quijote era a peça da armadura que cobria a coxa, cujo correspondente em português é ‘coxote’, e não a mera transliteração ‘quixote’” (“O engenhoso fidalgo D. Quixote da Mancha: volume I”, Miguel de Cervantes, tradução de José Luis Sánchez e Carlos Nougué, Ed. Abril, 2010)? Desnecessário, não? Esse desprezo, porém, parece-nos mais um reflexo da superficialidade do conhecimento que tomou conta dessa sociedade globalizada pós-moderna super-ultra-mega informada em que vivemos. Hoje em dia, todos querem make a pint of comprehension fill up a gallon of verbiage (Ezra Pound, The ABC of Reading).

Acreditamos que a Nota do Tradutor nos ajuda a compreender o porquê das coisas – e saber o porquê das coisas é o primeiro passo para nos tornarmos seres humanos melhores. Mas olhem ao seu redor! Vocês acham que estamos nos tornando melhores? Pois é, não nos espanta que os estertores da Nota do Tradutor sejam ouvidos por toda parte...

Um comentário:

  1. Curti. Tb sou super a favor das notas! Lembro que quando traduzia histórias para uma amiga há alguns séculos, sempre fazia notinhas qdo não conseguia traduzir trocadilhos...

    ResponderExcluir